“Tenho orgulho de pertencer a uma nação que
abrigou os perseguidos e refugiados de todas as religiões e países do mundo.
Tenho orgulho em lhes dizer que congregamos em nosso seio os mais puros remanescentes
dos israelitas que vieram para o sul da Índia e se refugiaram conosco no mesmo
ano em que seu sagrado templo era destruído em pedaços pela tirania romana.
Tenho orgulho em pertencer a uma religião que deu guarida e ainda resguarda os
remanescentes da grande nação zoroastriana.”
Swami Vivekananda
Centenas de homens e mulheres estavam fascinados e cativados, ouvindo estas poderosas e tocantes palavras de Swami Vivekananda, na abertura do Parlamento das Religiões em Chicago, no ano de 1893.
A
linda história de como os refugiados zoroastrianos encontraram suas novas
raízes na Índia é igualmente fascinante e tem uma ou duas lições para todos nós
hoje em dia, quando parecemos tão inseguros e indecisos em nos integrarmos num
todo mais amplo, seja ele uma família, uma comunidade, um país ou mesmo uma
aldeia global.
No século 8 AC, após a queda do império persa para os árabes, as pessoas tinham duas alternativas : conversão ao islã ou a morte. Alguns poucos bravos escolheram uma terceira saída : a fuga. Nem todos, contudo, lograram seu intento. Aqueles que escaparam do alcance dos conquistadores árabes levaram uma vida errante por algum tempo até que, finalmente, em 936 AC, chegaram a Sanjan, um pequeno vilarejo pesqueiro na costa ocidental de Gujarat. O rei hindu local, Vajjada-deva, pertencente à dinastia Silahara, deu-lhes as boas vindas e providenciou-lhes abrigo. Foi marcado um dia para uma audiência especial e todos os cidadãos foram convidados. O encontro foi presidido pelo rei. Os refugiados persas – hoje conhecidos na Índia como parsis – sentaram-se ao centro da assembléia. Seu idoso e frágil sacerdote, portando um pequeno afarghan com o fogo sagrado, era o porta-voz do grupo. Ao seu lado postava-se um intérprete.
Perguntou o rei : - Que desejais de nós,
ó estrangeiros de longínqua terra ?
- Liberdade de culto, Sua Alteza,
respondeu o velho sacerdote.
-
Concedido ! disse o rei. Há alguma outra coisa que desejais ter ?
-
Liberdade para criar nossos filhos sob nossas tradições e costumes.
-
Concedido ! disse o rei. Algo mais ?
- Um
pequeno pedaço de terra para cultivo, de forma que não sejamos um fardo ao povo
que nos acolhe.
-
Concedido ! E inclinando-se para a frente com um sorriso brejeiro a iluminar
seu rosto, o rei perguntou ao velho sacerdote : - Sois todos agora, senhor,
partes de nós. O que fareis para esta terra que agora também é vossa ?
Solene e grave, o sacerdote
pediu que uma tigela cheia de leite lhe fosse trazida. Seu pedido foi
imediatamente atendido pelo rei. Então o sacerdote pediu uma colher de açúcar
que em seguida lhe foi entregue. Ciente de que os olhares de toda a
assistência estavam voltados para si, o
sacerdote derramou o açúcar lentamente no leite e misturou-os bem. Erguendo a
tigela com suas trêmulas mãos o sacerdote perguntou à assembléia : - É possível
ver-se o açúcar nesta tigela de leite ? O silêncio foi a resposta. Voltando-se
para o rei o sacerdote zoroastriano falou : - Majestade, nós tentaremos ser
como esta insignificante porção de açúcar no leite de vossa humana
generosidade. Então o sacerdote fez um sinal aos seus patrícios e todos –
homens, mulheres e crianças – prostraram-se por extenso ao solo. Cada qual
pegou um punhado de terra e, com lágrimas escorrendo de seus rostos,
esfregaram-no nas cabeças e olhos. Lavaram em seguida mãos e pés, voltaram seus
rostos para o Sol, recitaram a oração Kusti e realizaram seu ritual.
A
atmosfera do local estava carregada de força mística. As pessoas levantaram-se
de seus assentos e abraçaram aqueles “atithis”de uma terra distante.
Acolheram-lhes em seus lares e em seus corações. “– Jamais se considerem como
refugiados, disseram-lhes. Vocês são nossa gente; somos todos um.”
Este não é um incidente isolado na história da Índia.
Com mais de 900 milhões de habitantes a Índia é a maior nação democrática do
mundo, abarcando religiões como hinduísmo, islamismo, cristianismo, jainismo,
parsis, israelitas e um sem número de grupos étnicos e religiosos. Existem
inúmeros casos de refugiados que foram abrigados não apenas com meras boas vindas, tampouco tolerados, mas sim aceitos e integrados
no todo. Nos dias de hoje, um ou outro incidente conflituoso pode dar a
impressão de que a India não permaneceu fiel aos seus antigos princípios de
hospitalidade. Mesmo assim, comparado com a situação existente na maior parte
do mundo, a grande nação hindu ainda é um oásis de liberdade no campo
religioso. (**) O açúcar zoroastriano
dissolveu-se harmoniosamente e a comunidade parsi vem produzindo, ao longo dos
séculos, eminentes personalidades na sociedade hindu, tornando o país melhor,
mais rico e mais brilhante. Este é um esplendido exemplo de como culturas
diferentes, tradições e religiões diferentes podem conviver em harmonia e
aprenderem a amar, respeitar e aceitar uns aos outros. Cada membro contribui
para o grupo como um todo, e o todo, por sua vez, protege e enriquece cada
membro.
E o que é que nós podemos aprender de tudo
isto ? A primeira coisa que aprendemos é que cada um de nós é açúcar; e leite é o todo maior do qual somos
ou queremos ser uma parte. Da mesma forma que é natural ao açúcar dissolver-se
no leite e se tornar totalmente integrado à constituição do leite, é natural
para nós “dissolvermo-nos” num grupo,
seja ele uma família, comunidade, nação ou o mundo como um todo, e nos
integrarmos nele. A segunda lição é que dissolvendo-nos num grupo não perdemos
nossa individualidade. O açúcar não perde sua natureza quando se dissolve no
leite; não só retém sua doçura como também adoça o leite. Conosco sucede o
mesmo : não só nada perdemos como contribuímos positivamente com o grupo com
nossa presença dissolvida. A terceira coisa aprendida é que, ao nos dissolver,
abrimo-nos a outros elementos saudáveis e nutritivos presentes na solução.
Temos assim um tráfego de mão-dupla : contribuímos com o grupo e dele recebemos
uma porção de coisas. Em quarto lugar, aprendemos que para nos dissolver não
precisamos fazer nada de especial : temos que ser nós mesmos, nem mais nem
menos. Ao açúcar basta-lhe tão-somente ser açúcar para se dissolver. Portanto,
a integração não deverá ser um problema se formos verdadeiramente autênticos.
Deparamo-nos à nossa volta com tanta
gente inadaptada, deslocada, seja na família, na sociedade, nos mosteiros. Pessoas que são incapazes de se integrar no
grupo ao qual, se pressupõe,façam parte. Não deixam de ser açúcar, é certo, mas
alguma coisa está errada com este açúcar. É como se estivesse coberto com uma
camada insensível e insolúvel de medo, suspeitas, ódios, ciúmes, preconceitos e
compreensão distorcida de si mesmo. Isto é o que torna difícil a integração.
Para que a integração seja possível é
preciso que de alguma forma aquela incrustação insolúvel seja extirpada.
Analisando-nos, e à nossa vida, examinando
nossas prioridades e necessidades, com uma mente calma, pacífica e
concentrada, é usualmente suficiente para nos libertarmos do açúcar daninho e
acelerarmos o processo de dissolvimento. Em alguns casos ajuda externa pode ser
necessária. Pais e professores podem fazer muito para ajudar uma criança em sua
integração ao meio ambiente. Adultos que continuam alienados, sem se
integrarem, dissociados, normalmente são assim desde crianças. A educação e o
treinamento na infância exercem uma grande influência no tipo de vida que o adulto
vive.
Várias perguntas surgem à baila, pertinentes
que são : Como posso ter certeza que não desaparecerei por completo se me
dissolver no grupo ? Restará algum “eu” ou ele será resumido totalmente a “nós”
? Terei que perder minha liberdade pessoal para que possa desfrutar da
liberdade coletiva ? O que na realidade
precisamos saber é se podemos ser simultaneamente “eu” e “nós “. A Vedanta afirma – Sim ! Podemos ser ambos : “eu” , na
minha natureza fundamental e “nós”, na
minha natureza aparente. Essencialmente
sou espírito – eterno, livre, inato e imortal, bem-aventurado e perfeito. Posso
permanecer como sou, não importa a que grupo pertença. Nada pode tirar, reduzir
ou mudar minha verdadeira natureza, muito embora eu sequer a tenha ainda realizado
em sua totalidade. Contudo, aparentemente, sou um ser humano. Tomo o que
preciso e preparo-me para dar o que posso. Sinto que necessitamos viver juntos
e trabalhar juntos em direção a uma meta compartilhável. Ninguém é uma ilha.
Nossas vidas se inter-relacionam. Não
posso ser feliz a menos que você também o seja. Se você é infeliz, pode, se
quiser e tentar com firmeza, fazer minha
vida igualmente infeliz.
Assim, cada um de nós pode ser “eu” e “nós”
ao mesmo tempo sob diferentes níveis de consciência. Ao me dissolver num grupo,
como açúcar no leite, tenho condições de reter minha doçura, minha essência-açúcar como espírito e,
simultaneamente, posso contribuir para o enriquecimento do grupo inteiro. Em
troca, como ser humano, sou protegido e nutrido pelo grupo. Se sou um aspirante
espiritual terei assim um ambiente excelentemente harmonioso e adequado para
prosseguir minha busca pela realização de minha verdadeira natureza.
Swami Turyananda, um grande discípulo
monástico de Sri Ramakrishna, resumiu em sábias palavras um conselho precioso :
“Em assuntos de opinião, nade a favor da correnteza; em assuntos de princípios,
mantenha-se firme como uma rocha.”
Manter-se firme como uma rocha em
assuntos de princípios eqüivale a reter conscientemente nossa natureza de
açúcar; nadar com a correnteza em assuntos de opinião é dissolver-se no leite.
Opiniões dizem respeito à nossa natureza aparente; princípios são inerentes à
nossa natureza fundamental. Com tal conselho, nenhum estudante de Vedanta terá
qualquer dificuldade para viver em harmonia grupal.
O mundo em que vivemos nos dias de hoje está
muito dividido. Divide-se em grupos que, paradoxalmente, têm membros fortemente
unidos; unidos com um tipo errado de
cola. A cola da identidade racial, por exemplo. Ou da nacionalidade, da
ideologia política, da língua, da religião, da cor e mesmo de gênero sexual.
Grupos baseados nesses fatores podem trazer algum tipo de segurança aos seus
próprios membros mas também produzem atritos, incompreensões e – ao final – guerra.
Só alguns exemplos : conflitos étnicos na ex-Yugoslávia; inimizades tribais na Nigéria, Ruanda e
Somália; a insolúvel turbulência no Oriente Médio; a infindável desconfiança
entre Índia e Paquistão; o surgimento de grupos neo-nazistas na Alemanha e o ainda
existente problema negros x brancos nos Estados Unidos e na África do Sul –
tantos grupos e quantos problemas !
O que se precisa é o tipo certo de cola. Uma
cola que nos una todos juntos, não como desiguais, como grupos incompatíveis,
cada qual com sua ordem do dia, mas como uma só e unida família humana. A consciência de nossa verdadeira natureza
divina é esta cola. Ela nos une e nos liberta ao mesmo tempo.
(*) Editorial condensado da revista Vedanta Kesari, da Ordem Ramakrishna, Chennai, Índia,